domingo, março 21

ESCRITA «FRANCHISADA»?

Esta tarde (como é domingo dedico-me à morrinha televisiva) vi uma entrevista, no canal de notícias do cabo, com um novo escritor português, que viveu uns tempos em Nova Iorque, promovendo o seu recém-publicado livro com o título O Maior Espectáculo Do Mundo - não me lembro do nome do escritor, mas fixei o do livro que, aviso, não li e, muito provavelmente, não vou ler. A entrevistadora apontava, como se de uma vantagem se tratasse, que aquele livro podia ter sido escrito em qualquer sítio, por um escritor de qualquer nacionalidade e podia passar-se em qualquer lugar do mundo.
A principal qualidade do dito livro seria, assim, a descaracterização - a mesma que tenta invadir as cidades, atinge, agora, a escrita.
Meses antes (mais precisamente em Dezembro), nesse mesmo canal, ouvi o realizador Manoel de Oliveira a dizer- quando lhe perguntaram se este (esse) era o seu Porto - , pesarosamente, que cada vez mais as cidades estão mais parecidas umas com as outras. No entanto, as cidades ainda se mantêm, de alguma forma, únicas - seja pela sua arquitectura, pela sua luz, pelo seu cheiro, pelas suas pessoas.
Parece-me ainda mais difícil essa descaracterização da escrita, e repugna-me que uma obra escrita em português possa ser igual a uma escrita em qualquer outra língua (tentem traduzir «saudade»), sendo o inverso igualmente difícil. O que torna uma obra única e lhe confere conteúdo é a particular vivência do seu autor, que, a meu ver, resulta da sua particular percepção do particular meio em que se insere. Escreveria a Marguerite Duras da mesma maneira se nunca tivesse conhecido Indochina? Lobo Antunes transmitiria os mesmos sentimentos se tivesse outra experiência de vida?