quarta-feira, maio 3

Propinas, sim?

Um tal de José Reis publicou na última Cabra um contributo interessante para o debate sobre a legitimidade das propinas. Por vias manhosas, chegou-nos às mãos uma versão mais completa desse texto, que o próprio não pôde divulgar nas páginas do jornal por falta de espaço. Fazemos-lhe aqui esse favor, e desejamos-lhe boa carreira ao serviço dos pseudo-contrapoderes existentes. Decerto os bloquistas lhe arranjarão um lugar à mesa nas Avenidas Novas para os seus debates elegantes sobre a miséria do mundo.

Propinas, para quem?

O colega Isaque Santos, estudante de Direito, publicou no último número da Cabra um artigo em defesa das propinas, sugerindo que estas são legítimas e que o movimento estudantil deveria aceitá-las e lutar doravante por um melhor sistema de bolsas.

Refira-se antes de mais o economicismo do texto: desenvolvimento de vocações, realização pessoal, puro gosto desinteressado por uma matéria - tretas! O estudante não passa aqui de um homo economicus, de quem se espera unicamente que "invista" em si mesmo como "capital" e não aspire a mais que vender-se caro no mercado de trabalho. Triste a sociedade que leva assim os indivíduos no seu íntimo a reduzir a sua existência, na sua riqueza e diversidade, ao mero poder de vender cara a pele, em vez de lhes proporcionar o desenvolvimento mais livre possível das suas vocações - é sinal de um novo patamar de mercantilização da vida social.

Mas independentemente da crítica mais teórica a tal mentalidade, a argumentação é criticável mesmo dentro da sua lógica mercantil. É essa critica em termos estritos, os da mera lógica de financiamento, que vamos aqui desenvolver.

Primeiro, Isaque Santos vê correctamente que a educação não é uma mercadoria como as outras: não existe nenhum sistema de educação puramente privado no mundo. Quantos estudantes de física teríamos ao preço real desse curso? Portanto, a sociedade no seu todo, que beneficia indiscutivelmente em ter uma população formada, deve financiá-lo através do Estado.

Qual é então para Isaque Santos a justificação de haver propinas? É que, para alem da vantagem social, haveria uma vantagem privada que os estudantes retirariam da "fruição directa do bem" ensino superior (ES), na forma de melhores remunerações futuras, vantagem que seria justo que pagassem sob a forma de taxa.

Essa vantagem já é paga, na forma de futuros impostos mais altos. É justo pagá-la uma 2ª vez? Mas não nos apressemos. Por esta ordem de ideias, concluímos que só os bens de interesse público cuja fruição directa concede uma tal vantagem devem ser pagos. Outros bens, como a saúde, que produz cidadãos saudáveis, ou o ensino obrigatório, que produz jovens com uma formação genérica - mas não trabalhadores com uma vantagem remuneratória directa - terão por justiça de ser gratuitos. Já não é mau nos dias que correm.

Por outro lado, se o critério são os salários vantajosos do futuro, manda a coerência que alarguemos esta lógica.

Não é "justo" que um estudante de medicina pague o mesmo que um estudante de línguas e literaturas, quando as suas remunerações se prevêem tão diferentes - propinas diferenciadas por curso seriam a solução. E porque não transpor a mesma lógica para o interior de cada formação? Duas pessoas não têm remunerações iguais só porque tiram a mesma licenciatura. Porque não, p. ex., cobrar mais aos estudantes de medicina que escolham a especialidade de cirurgia em relação aos que escolham, digamos, a de medicina interna? É sabido que os cirurgiões são dos mais afortunados entre os médicos. E porque não ir para além da Universidade? Porque não, p. ex., exigir propinas altíssimas no Centro de Estudos Judiciários? Os juízes que de lá saem têm remunerações chorudas pela frente, e tanto quanto pudemos apurar não lhes é cobrada qualquer propina. Esperamos ver Isaque Santos na linha da frente dessa reivindicação, e auguramos-lhe de resto um bom futuro nessa carreira - se conseguir pagar as propinas.

As possibilidades são infinitas, e justamente porque são infinitas, prevemos dificuldades práticas, pois (1) no plano individual, é impossível prever a remuneração futura de cada estudante, (2) no plano colectivo, as estratificações profissionais não têm fim e (3) também elas mudam de forma imprevisível. Mas é para disfarçar esses problemas que estão cá juristas e economistas.

Prosseguindo nesta lógica, surge um segundo problema: se a propina é justa, qual é o valor justo da propina? 900 euros? 2000? 5000? Isaque Santos não se pronuncia. Pegar num conceito vasto como justiça e pôr-lhe um preço em cima tem que se lhe diga. No entanto, os termos deste debate são bastante mais flexíveis: há 4 anos, ninguém considerava publicamente um valor de 900? justo, hoje, é o que se vê. Há dias, o jornal Público (21/3) noticiava que a mui-liberal OCDE considerava-o ainda muito baixo, justamente sob o mesmo argumento de que "as propinas são relativamente baixas enquanto as contrapartidas salariais para os detentores de um diploma são altas". Podemos esperar debates apaixonados acerca da justiça de um valor como 2000?, e aguardamos curiosos a opinião do nosso colega a esse respeito.

Subjaz a tudo isto um raciocínio curioso: a propina seria uma forma de diminuir desigualdades sociais. A ideia é que nas condições específicas portuguesas são os mais desfavorecidos a financiar o grosso dos serviços públicos, ES incluído, ao qual todavia acede só uma minoria. Mais caricaturalmente: são os pobres quem financia o ensino dos ricos. Conclusão: mais justiça fiscal? Não: cobrar o ES a todos, tornando-o ainda mais inacessível aos pobres!

A retórica é uma coisa maravilhosa, e seja pela inteligência matreira, seja pela mais cândida cegueira ideológica, permite transformar tudo no seu oposto.

É certo que em termos lógicos uma coisa não implica a outra, mas estrategicamente: que governo se daria ao trabalho de subir as propinas, com todos os riscos inerentes, e ao mesmo tempo subir na mesma medida as bolsas, por forma a compensar a injustiça social? Teria de subi-las não só em quantia, para não prejudicar os bolseiros existentes, mas também em número, para acorrer aos novos estudantes subitamente carenciados pelo aumento. Sendo pragmático, para isso não subia as propinas.

No topo da escala social, os ricos seguem a sua vida como sempre. No meio, e ainda mais na difusa fronteira com a base, parece-nos que o empobrecimento não é de todo compensado por uma proliferação de bolsas. A título de exemplo, necessariamente insuficiente, um artigo de Elísio Estanque e João Arriscado Nunes na Revista Crítica de Ciências Sociais de Outubro de 2003 estimava que 47% dos estudantes da UC provinha das classes teoricamente mais desfavorecidas (Trabalhadores não-qualificados, Técnicos não-gestores e Trabalhadores semi-qualificados). Juntando a categoria híbrida dos Trabalhadores por Conta Própria, onde também cabe certamente gente carenciada, eram 59%. Segundo os SASUC, 20% dos alunos têm bolsa.

Quanto ao efeito do aumento das propinas no abandono da universidade pelos estudantes, Isaque Santos considera-o inexistente, pois a bolsa cobre automaticamente o valor das propina, e subindo uma sobe automaticamente a outra. Só haveria uma maneira de sabê-lo: consultar a evolução dos estudantes que entram e dos estudantes que suspenderam a sua inscrição nestes 2 anos. Estranhamente, as universidades não têm divulgado essa informação aos sete ventos.

Um último problema, de eficiência institucional. Existe já um organismo especializado na difícil contabilidade das contribuições sociais: o fisco. Se o fisco, com todo o seu aparato humano e técnico, tem mesmo assim dificuldades em fazer com que cada um pague o que é justo, não se vê como uma miríade de serviços de acção social universitária, espartilhados e cada qual com as suas regras, conseguiria melhor. Em nome da simples eficiência, deixe-se ao fisco o que é do fisco. Se o objectivo é, como Isaque Santos diz, a igualdade, é mais fácil subir os impostos nos escalões mais altos, e às empresas, que aumentar propinas e desenvolver depois um bizantino sistema de bolsas para compensar as desgraças resultantes. Antes um punhado de estudantes pagar de menos que uma enormidade deles pagar demais, ou nem chegar à universidade. Mais vale um criminoso livre que nove justos presos.

É que para além do obstáculo económico, pesa enormemente o obstáculo cultural: o numerus clausus garante que apenas os alunos com melhores notas entrarão. Pierre Bourdieu mostrou há décadas, em obras como Os Herdeiros (1964) e A Reprodução (1970), como justamente os filhos das classes altas têm mais hipóteses de ter notas altas e caber nos numerus clausus. Portanto, mesmo um ES público e gratuito não acabaria com as desigualdades - esse é um problema estrutural da sociedade, que nenhuma lei jurídica poderá resolver - mas atenuá-las-ia. O que os defensores das propinas defendem, consciente ou inconscientemente, é que ao obstáculo do capital cultural se junte o obstáculo do capital económico no acesso ao ES. É uma reacção que se coaduna com o facto de até as elites sentirem a corda ao pescoço, mas há sempre quem na sua candura julgue tudo isto conciliável com lenga-lengas de qualificação e choques tecnológicos.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Vejo futuro nesse tal de José Reis!
Hugo Dias

5/03/2006 02:18:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Este José Reis é de mais! Tenho que bater palmas e fazer venias!!!

5/04/2006 01:34:00 da tarde  
Blogger koenige said...

riverbengo: não tenho links, mas se entendi bem, o rapaz é contra as propinas e diz que nenhum sistema de bolsas resolverá o problema das propinas. Creio que é a posição da esquerda em geral. Por isso é capaz de ter sido demasiado específica a qualificação de bloquista. Mas aquela prosa afectada e empinada é tããão Bloco!

5/04/2006 10:28:00 da tarde  

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